Eterna Dona Ivone Lara

Homenagem à saudosa Dama do Samba, a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores do carnaval carioca

Hilton Abi-Rihan

30/04/2018 às 16h19 - segunda-feira | Atualizado em 10/05/2018 às 14h55

João Lopes
Clayton Ferreira
HILTON ABI-RIHAN, radialista, jornalista e apresentador do programa Samba & História, da Super Rede Boa Vontade de Comunicação (rádio e TV).

No dia 16 de abril, no Rio de Janeiro/RJ, a cantora e compositora Dona Ivone Lara voltou à Pátria Espiritual, aos 97 anos de idade. Foi uma mulher pioneira, que se destacou em um cenário considerado masculino, como o do mundo do samba, tornando-se grande nome da Música Popular Brasileira (MPB). A consagrada artista nutria apreço especial pelo trabalho socioeducacional da Legião da Boa Vontade e pela liderança do dirigente da Instituição, sobre o qual afirmou certa vez: “Paiva Netto já veio mandado por Deus para olhar por todos nós. Que ele continue, nas orações dele, pedindo por todos nós aqui, que ele continue sendo como ele é, trabalhando pelos pobres, e que a vida espiritual dele cresça ainda mais, porque faz muita coisa!”

A revista BOA VONTADE reproduz aqui a entrevista concedida por ela ao programa Samba & História, da Boa Vontade TV, em 2011, o qual discorre sobre a longa e brilhante carreira dela. Trago esse conteúdo como justa homenagem a essa renomada artista, que tanto fez pela cultura brasileira, cuja galeria de compositoras só tem à altura nomes como Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Dolores Duran (1930-1959). A LBV e seu diretor-presidente enviam as mais sinceras vibrações de Paz ao Espírito Eterno da querida cantora, extensivas aos seus familiares, amigos e fãs.

DO REDUTO DO SAMBA CARIOCA PARA O MUNDO

No rol dos bairros considerados redutos do samba no Rio de Janeiro/RJ, Oswaldo Cruz se faz presente na zona norte da cidade. Sua tradição está ligada à história da escola de samba Portela e aos seus grandes compositores. Lá morava modestamente uma das matriarcas do gênero, Dona Ivone Lara. Naquela ocasião, acompanhada por sambistas no quintal de sua casa, em entrevista ao Samba & História, a cantora relembrou episódios que marcaram sua trajetória e estilo.

Antes de se consagrar uma das estrelas da MPB, Dona Ivone trabalhou como enfermeira especializada em Terapia Ocupacional e se formou, logo depois, como assistente social. Ela lembrou com carinho a época em que atuou em hospitais psiquiátricos, porém, sem deixar a música de lado.

Dona Ivone aprendeu desde cedo a tocar cavaquinho. Aos 12 anos, escreveu seu primeiro samba, após ganhar de Mestre Fuleiro (1912-1997) e do Tio Hélio (1903-2007) um pássaro tiê-sangue. O nome serviu de inspiração para a primeira música, Tiê, Tiê. A composição fez sucesso e até recentemente foi regravada por artistas renomados, a exemplo de Alcione.

A primeira parceria que lhe abriu caminho no mundo do samba foi com os compositores Silas de Oliveira (1916-1972) e Bacalhau. “Tem um samba que eu fiz com eles, Os Cinco Bailes da História do Rio, que deixou saudade. Tive e tenho bons parceiros até hoje.” E foi com esse samba que a Império Serrano desfilou no carnaval de 1965, tendo alcançado o quarto lugar. Por esse feito, Dona Ivone Lara ocupou o lugar de primeira mulher a fazer parte da ala de compositores do carnaval carioca.

No começo de 1970, após a morte de Silas, passou a compor com Délcio Carvalho (1939-2013) e ganhou mais notoriedade. Ao lado dele, compôs sucessos como Acreditar, Sonho Meu e Alvorecer. “Tivemos a oportunidade de fazer grandes composições. Depois, chegou para somar com a gente o Hermínio Bello de Carvalho.”

Em 1978, Sonho Meu, gravada por Maria Bethânia e Gal Costa no LP Álibi, de Bethânia, recebeu o Prêmio Sharp de Melhor Música. Outras canções dela ganharam força nas vozes de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Roberto Ribeiro. Em 1979, a Europa conheceu o talento dessa veterana e autêntica sambista. Nesse ano, realizou em Paris (França) uma temporada com o grupo Brasil Canta e Dança e lançou o disco Sorriso de Criança, com arranjos do maestro Nelsinho e participação especial de Rosinha de Valença (1941-2004), ao violão, e de Clara Nunes (1942-1983), nos vocais. Nesse mesmo ano, Elizeth Cardoso (1920-1990), no LP O Inverno do Meu Tempo, incluiu a música Unhas, parceria de Dona Ivone com Hermínio Bello.

BODAS DE OURO

Em 1997, Dona Ivone Lara completou 50 anos de carreira. Para celebrar, gravou o CD Bodas de Ouro. Nele, interpretou composições suas em dueto com alguns dos principais cantores da Música Popular Brasileira, entre eles Martinho da Vila, Djavan, Zeca Pagodinho e Almir Guineto (1946-2017).

Colhendo os frutos de tanta dedicação ao samba, no ano seguinte foi homenageada no Festival Latino, promovido pela EuroDisney, na França. A matriarca também já foi agraciada com a medalha Pedro Ernesto, em sessão solene no Plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por serviços prestados à música e à cultura.

A 21ª edição do Prêmio da Música Brasileira, em agosto de 2010, no Theatro Municipal, no Rio de Janeiro, teve como homenageada da noite Dona Ivone Lara. A Grande Dama do Samba foi reverenciada por artistas de diferentes gerações e estilos. Subiram ao palco músicos e intérpretes de renome, a exemplo de Caetano, Maria Gadú, Roberta Sá, Arlindo Cruz e Lenine. Todos lembraram o talento dessa compositora obstinada, dona de sucessos do cancioneiro popular, como Alguém me Avisou e Sorriso Negro, clássicos de qualquer roda de samba que se preze.

AS NOVAS GERAÇÕES AGRADECEM

Dona Ivone Lara, legítima representante te do matriarcado no samba, aliava sua vasta. Experiência ao potencial de jovens músicos. Sempre atuando nos palcos, não abria mão de compor e se apresentar ao lado de quem acabava de começar. “Ela é a matriarca do samba no Brasil, todos nós recebemos o grande exemplo dela. Conseguiu se formar, conquistou estabilidade financeira e conciliou isso com o samba. E nós seguimos esse caminho”, disse o cavaquista Bruno Castro, que acompanhou a cantora por mais de duas décadas.

Também músico, André Lara é neto da cantora, e argumenta: “Tem gente que quer comparar, mas não tem nada a ver. Nós bebemos da fonte que temos em casa, mas o resto é com a gente”. André recordou-se de sambas que compôs com a avó, em especial de um feito durante viagem de avião, indo para um show em São Paulo, com o cantor e compositor Bruno Castro, do qual fez questão de recitar trechos: “‘Pisei nesse chão que a vovó pisou, no terreiro que abrigou o amor e a saudade. Toquei no cavaco que abrigou muitas noites de esplendor no quintal do vovô. (...) Grande império de bambas que é o meu lar’”.

Essa passagem pertence à canção Luta Imperiana, em que Bruno e André compuseram a primeira parte, e Dona Ivone Lara, a segunda. Com o tempo, a cantora deixou de compor com tanta frequência para a escola do coração, mas se manteve madrinha da ala dos compositores. As novas gerações receberam e continuarão a receber a influência da Dama do Samba, buscando a inspiração na qualidade de suas músicas e do timbre de Dona Ivone Lara, uma senhora que trouxe, do berço, a vocação de compor e cantar.

Colaboração: Isabela Ribeiro.