Cientistas da ONU preveem que a Terra possa bater recordes de temperatura
Esse aumento está diretamente ligado à emissão de gases do efeito estufa, que retêm o calor, e à projeção da chegada, nos próximos meses, do fenômeno natural do El Niño
Leila Marco e Alan Lincoln
13/06/2023 às 07h44 - terça-feira | Atualizado em 20/06/2023 às 13h44
A Organização Meteorológica Mundial (OMM), da Organização das Nações Unidas (ONU), fez, no dia 17 de maio, um anúncio alarmante: nos próximos cinco anos a Terra pode bater recordes de temperatura. Esse aumento está diretamente ligado à emissão de gases do efeito estufa, que retêm o calor, e à projeção da chegada, nos próximos meses, do fenômeno natural do El Niño, ocorrido pela última vez em 2016.
O documento ressalta que existe a “probabilidade de 66% de que a média anual da temperatura global na superfície, entre 2023 e 2027, seja mais de 1,5ºC superior aos níveis pré-industriais durante pelo menos um ano”. Há também a possibilidade de 98% de que, pelo menos em um dos próximos cinco anos, seja suplantado o recorde alcançado desde o início dos registros, quando o El Niño foi forte.
De acordo com o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, o relatório põe a humanidade em alerta, pois, apesar de não afirmar que a condição seja permanente, evidencia que o limite previsto de 1,5ºC do Acordo de Paris deverá ser ultrapassado em breve. O trabalho científico ainda compara os padrões de chuva esperados para maio a setembro de 2023 a 2027 com as médias de 1991 a 2020, sugerindo redução da estação de chuva na Amazônia e em algumas regiões da Austrália e aumento de precipitação no Sahel, no norte da Europa, no Alasca e norte da Sibéria.
Um pouco antes, no dia 20 de março, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), da ONU, havia lançado o Sexto Relatório de Avaliação (AR6), que é o último volume da pesquisa de oito anos do corpo de cientistas mais destacados do mundo sobre mudanças climáticas, no qual apontam que, embora urgentes, ainda se pode colocar em prática ações para assegurar um futuro habitável aos moradores da Terra (veja no infográfico ao lado alguns dos principais pontos registrados pelo relatório).
Sobre o tema, a revista ouviu a diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), especialista em fogo nos biomas Amazônia e Cerrado, a paraense Ane Auxiliadora Costa Alencar, que é graduada em Geografia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), tem mestrado em Sensoriamento Remoto e Sistema de Informação Geográfica pela Universidade de Boston e doutorado em Recursos Florestais e Conservação pela Universidade da Flórida, ambas nos Estados Unidos. Na entrevista, a cientista analisa o relatório da ONU e as medidas que urgem ser implementadas para evitar um cenário pior, bem como chama a atenção para a participação de toda a sociedade no incremento dessa nova mentalidade.
Contribuição do Brasil
Dra. Ane Alencar, especialista no combate ao fogo nos biomas Amazônia e Cerrado pela UFPA, afirma que nosso país deve priorizar o fim do desmatamento e do uso de combustíveis fósseis
BOA VONTADE — Dentro dessa última parte da pesquisa divulgada no relatório síntese do IPCC, o que é mais relevante?
Dra. Ane Alencar — Os relatórios do IPCC têm trazido notícias alarmantes. Estamos sentindo já todos os males das mudanças climáticas globais. Esse último trabalho só vem a referendar isso. Entretanto, ainda temos esperança de mudar o nosso consumo. A emissão de combustíveis fósseis é um elemento importante; então, a descarbonização das economias é o ponto central para que realmente se consiga dar uma virada nesse contexto de emergência. Outro ponto ressaltado é que isso tem de ser feito de maneira justa. O que significa que aqueles países que estão sofrendo mais com as mudanças climáticas, as pessoas mais vulneráveis, têm de ter oportunidades de sair dessa situação. (...) Hoje, no Brasil, temos visto que muitos problemas com enchentes, deslizamentos, secas, isso tudo tem afetado mais os vulneráveis.
BV — O desastre que atingiu o litoral norte de São Paulo, ceifando tantas vidas, é uma decorrência direta de um processo da emergência climática que vivemos?
Dra. Ane Alencar — Cada vez mais presenciaremos eventos climáticos extremos, eles têm ocorrido em períodos que normalmente não se davam antes. Há várias camadas de preparação para esses eventos, uma delas diz respeito ao local onde os indivíduos estão ocupando. Quais são as áreas de risco? Existe alguma forma, algum mecanismo — não de prevenção, porque eles já estão ocupando essas regiões que têm maior risco —, talvez um sistema de alarme, para saírem de suas casas quando há determinada quantidade de chuva prevista? O Brasil precisa se equipar para lidar com essas questões relacionadas aos riscos climáticos.
BV — Quanto à questão da justiça climática, os povos precisam olhar para as consequências que se abatem sobre todos de formas diferentes?
Dra. Ane Alencar — Sim, com certeza. Hoje as mudanças climáticas têm impactado não somente os mais vulneráveis, mas todas as classes sociais. Um exemplo disso são os incêndios que ocorrem na Califórnia, que atingem quem, principalmente, vive na floresta. São pessoas mais ricas que querem ter um tipo de vivência com a Natureza, não são vulneráveis econômica e socialmente, mas têm sido impactadas. Entretanto, os cidadãos mais vulneráveis economicamente, mais pobres, eles têm menos chance de se recuperar. Às vezes, perdem tudo o que têm em um só evento climático, e não existe um sistema para acolhê-los, para ajudá-los a refazer suas vidas. O Brasil, de fato, precisa investir numa inteligência para lidar com eventos climáticos extremos. São, às vezes, municípios inteiros que têm de se recompor, como o que aconteceu em Rio Branco/AC, nas cheias em março, no período chuvoso da Amazônia, em que a região ficou embaixo d’água, várias casas foram perdidas, um prejuízo muito grande. Quanto que esses municípios têm perdido por conta dessas questões? Isso é um prejuízo também muito grande para a nação. E o nosso país talvez não esteja preparado para lidar com essa situação que se tem tornado cada vez mais frequente.
BV — Essa instabilidade climática altera o planejamento de várias sociedades, em especial de produtores rurais?
Dra. Ane Alencar — Há impactos fundamentais para a questão de segurança alimentar de comunidades tradicionais. Quando se pensa em alguns povos indígenas, comunidades extrativistas ribeirinhas, que vivem em harmonia com a floresta ou com outros tipos de ambiente, de vegetação nativa no Brasil, essas pessoas são guiadas por bioindicadores. Que são esses bioindicadores? Eles sabem exatamente quando plantar, porque tem uma determinada chuva que ocorre depois de uma determinada lunação, ou num determinado mês. Essas comunidades acabam sendo impactadas naquilo que lhe é mais precioso, que é o seu supermercado natural. Nesse caso, é bem preocupante, porque leva um tempo para que eles — que passaram séculos, e séculos, e séculos se adaptando para identificar quais são esses indicadores — se acostumem com essa certa instabilidade climática e não tenham mais confiança neles.
BV — Como as alterações nas comunidades tradicionais já vêm se dando?
Dra. Ane Alencar — Eu me recordo da história que um indígena do Xingu me contou: em algumas terras indígenas dos Caiapós, em áreas de Cerrado, utilizavam o fogo para caçar, mas não como a gente faz. Eles recorrem à queima em uma época específica do ano que é mais úmida, para ele não se espalhar, é o chamado fogo cultural, cujo conhecimento tem sido adaptado há milhares de anos. Eles sabem que, quando o ipê-roxo floresce, nesse período, mais ou menos, eles podem caçar com o fogo. Entretanto, o ipê não floresce mais na mesma época, o que atrapalha o processo. Outra história interessante é dos [indígenas] Tucanos, que ficam na região [conhecida como] “Cabeça do Cachorro” [, município de São Gabriel da Cachoeira]. Conversando sobre o impacto das mudanças climáticas em seu território, eles disseram: “Aqui não temos espaço de tempo seco suficiente, com vários dias, porque chove muito nessa região do Brasil”, que fica no extremo noroeste da Amazônia, na fronteira da Colômbia com a Venezuela. E o que acontece é que há um tipo de proteína que eles comem, uma formiga chamada tanajura, e ela voa, faz uma revoada. E é mais ou menos isso, de repente a chuva não parou de ocorrer, mudou de época, aí as tanajuras não voaram naquele ano, e eles perderam uma fonte de proteína importante. São alguns exemplos de que realmente essas transformações impactam em todos os níveis e classes sociais, mas são ainda mais severas para os vulneráveis, os mais pobres e os que vivem diretamente em consonância com a floresta, com consequências na sua segurança alimentar.
BV — Como cientista, qual a sua percepção acerca dos países mais ricos no que se refere a assumir a responsabilidade, tendo em vista que eles são grandes emissores de gases do efeito estufa?
Dra. Ane Alencar — Eu acho paradoxal. Ao mesmo tempo que essas nações mais desenvolvidas têm, de fato, trabalhado no desenvolvimento de tecnologias que vão descarbonizar a economia deles, e os cidadãos desses países estão, cada vez mais, conscientes sobre a questão climática, ainda há dificuldade de evoluir para a descarbonização total. Hoje mesmo lia uma matéria sobre a COP-28, que ocorrerá nos Emirados Árabes, que é um dos principais produtores de petróleo do mundo. O texto falava da importância do investimento em novas energias limpas, verdes, mas essa fase para o término do uso do combustível fóssil parece que demora a acontecer. Existe a dificuldade de virar essa chave como nações e, realmente, optar pelo desuso dos combustíveis fósseis no dia a dia. Será que daqui a cinco anos iremos só comprar carro elétrico? Deveria ser algo nesse sentido... A China começou a fazer essa transição, ela possui outros problemas de emissões, mas começou a realizar essa parte. No Brasil, temos todas as condições de abraçar essa pauta, não só da redução por queima de combustíveis fósseis, que faz parte da nossa matriz de transporte energética, mas, principalmente, a da queima de florestas, que representa hoje a principal fonte de emissão brasileira. Se compararmos com outros países, o nosso custo é o menor, porque, enquanto Estados Unidos, China e vários lugares da Europa precisam reduzir suas emissões melhorando a matriz energética, transformar toda a fonte de aquecimento das casas, nós temos de reduzir o desmatamento, e ainda ganhamos mais ar puro, preservamos a biodiversidade, com possibilidade de exploração farmacológica e outros fins que nem conhecemos; além de salvar a qualidade dos rios, não só para diversão, mas também como fonte de água para as cidades.
BV — Temos ainda de mudar hábitos para essa nova realidade?
Dra. Ane Alencar — Apesar de as novas gerações já terem outro modo de pensar, que entendem mais o ambiente, a gente ainda possui hábitos que não contribuem para a mitigação das mudanças climáticas, como o uso exacerbado de energia, de carros, de transporte com base nos combustíveis fósseis. Há muito o que podemos fazer, desde utilizar melhor a energia até optar por um transporte público; e aí surge a necessidade de termos uma cidade que ofereça transporte público de qualidade. A questão da reciclagem do lixo, de aproveitar os lixões para produzir energia, um processo eficiente de aproveitamento dos resíduos sólidos, enfim, há vários aspectos que estão intimamente relacionados com a forma que vivemos.
Preocupação com El Niño forte
Apesar de ser um fenômeno natural e de não ter relação com as atividades humanas, essa anomalia acarreta mudanças consideráveis. Ele ocorre de tempos em tempos e provoca o aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico na sua porção equatorial, causando transformações na circulação atmosférica, interferindo no regime pluviométrico e no clima em várias regiões do planeta.
Para este ano, as previsões indicam a alteração da força e do sentido dos ventos alísios que vêm do leste para o oeste no Oceano Pacífico. Essa transição faz com que a água quente da parte ocidental do Pacífico rume em direção à sua região central e oriental. Segundo especialistas, esse movimento eleva as temperaturas oceânicas, desencadeando eventos climáticos extremos, como fortes chuvas e inundações.
“O Brasil, de fato, precisa investir numa inteligência para lidar com eventos climáticos extremos. São, às vezes, municípios inteiros que têm de se recompor, como o que aconteceu em Rio Branco/AC, nas cheias em março, no período chuvoso da Amazônia, em que a região ficou embaixo d’água, várias casas foram perdidas, um prejuízo muito grande. Quanto que esses municípios têm perdido por conta dessas questões? Isso é um prejuízo também muito grande para a nação.”