Crise climática e o impacto maior nas populações mais pobres
Doutora em Ecologia Humana pela Universidade da Califórnia, Patricia Pinho alerta sobre as regiões do planeta que mais sofrem com as mudanças climáticas
Leila Marco e Alan Lincoln
11/07/2022 às 09h54 - segunda-feira | Atualizado em 11/07/2022 às 10h59
Quando se fala das repercussões do efeito estufa, em especial da emissão dos gases carbônico (CO2) e metano (CH4) pela queima de combustíveis fósseis, que tem alterado o clima da Terra, além de observar as fortes ondas de calor, secas, incêndios florestais e a contínua elevação do nível dos rios, mares e dos oceanos, outros fatores já podem ser detectados em diferentes áreas e são alvo de estudo de cientistas.
Um desses pesquisadores de ponta é a professora Patricia Pinho, doutora em Ecologia Humana pela Universidade da Califórnia e diretora científica adjunta do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Ela é a autora principal no capítulo “Pobreza, modos de vida e desenvolvimento sustentável”, do grupo de trabalho II para o Sexto Relatório de Avaliação (2022) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que fornece uma avaliação detalhada das consequências dessas alterações, bem como dos riscos e da adaptação das cidades, onde mais da metade da população do mundo vive atualmente.
Na entrevista à BOA VONTADE, Patricia destaca que a própria existência do ser humano está em perigo, em razão de um planeta completamente alterado antropogenicamente, e que “os impactos mais severos são experienciados nos ecossistemas que estão situados no ‘sul global’”.
BV — O que precisa ser mais levado a sério nesse novo relatório?
Patricia Pinho — Esse último relatório do Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas reuniu mais de 270 cientistas, e a gente sabe, com alto grau de confiabilidade, que a trajetória e a variabilidade que estamos observando dos extremos climáticos são de origem antrópica, o que quer dizer: é o homem e seus processos de desenvolvimento socioeconômico, processos industriais e de agricultura, com a dependência em combustíveis fósseis, que têm gerado um aumento de emissões [desses gases, provocando, assim, a elevação] da temperatura global. Esse relatório lida, especificamente, com os impactos, com as vulnerabilidades e com as estratégias de adaptação, que são as soluções existentes. Ele é um alerta para a humanidade sobre a crise climática. E por que a gente chama de crise? Porque é sem precedente o número de eventos dramáticos, de secas e enchentes extremas, ondas de calor, alteração da sazonalidade... O que impacta diretamente a vida das pessoas, a produtividade agrícola, a economia... Além desse conceito de perdas e de danos materiais, há também os imateriais, intangíveis, como a perda de vidas humanas ou de cultura, do modo de vida... As pessoas, as populações tradicionais em regiões costeiras, sobretudo no Brasil, que tem uma imensa linha da costa, é bem relevante, têm sido obrigadas a sair, a deixar as suas áreas de habitação histórica, milenar, a exemplo de povos indígenas, por conta desses extremos.
BV — Em recente palestra, a professora ressaltou que as regiões que mais sofrem com as emissões de gases do efeito estufa geralmente não são as que mais poluem, e sim as mais pobres, por serem mais vulneráveis. Como lidar com os impactos das mudanças climáticas tendo em vista o social?
Patricia Pinho — Houve muito debate sobre esse assunto, porque existem assimetrias no aquecimento global, inclusive no que tange aos impactos. Os países industrializados, mais desenvolvidos hoje, situam-se na Europa; há também os Estados Unidos. Essas nações historicamente têm emitido mais gases de efeito estufa desde a revolução industrial até agora do que, comparativamente, por exemplo, o Brasil e os países da América Latina, da Ásia, as ilhas do Pacífico. E isso gera uma responsabilidade, porque, realmente, os impactos mais severos são experienciados nos ecossistemas que estão situados no “sul global”, [afetando] povos que estão no meio do processo, economias emergentes ou de baixo desenvolvimento econômico. Se esses países promoverem o mesmo tipo de desenvolvimento socioeconômico que os EUA, a Europa e outras nações fizeram, a gente estará piorando, e muito [, a situação do planeta]; transacionando para riscos e temperaturas inaceitáveis. Então, isso não pode acontecer, está em jogo a questão da justiça climática. Pede-se, globalmente, o anexo seis do Acordo de Paris para que esses que têm uma contribuição histórica de emissão de gases ajudem financeiramente na trajetória de desenvolvimento limpo, ou resiliente climaticamente, na adaptação dos países mais vulneráveis, que são de alta taxa de pobreza, de desigualdade socioeconômica, onde há uma grande população indígena ou tradicional, dependentes extremamente de atividades que são sensíveis ao clima, como a agricultura e a pesca, e onde os trabalhadores estão expostos ao ar livre. Mas isso não quer dizer que as pessoas que possuem melhor condição financeira estão a salvo de sofrer os impactos; países como os Estados Unidos também terão perdas econômicas violentas, mas têm mais condições de resposta, de implementação de uma agenda de adaptação, enquanto você vê regiões na África e na Amazônia nas quais enchentes têm afetado as cidades com magnitude sem precedentes, provocando, muitas vezes, um colapso daquele município. Precisamos estar atentos à questão da justiça climática, para evitar uma crise humanitária, porque a consequência disso é a ocorrência de maiores migrações e o crescimento da incidência de indivíduos morando nas periferias urbanas em condições sub-humanas.
BV — O Brasil é um grande produtor de alimentos. Caso as variações climáticas intensifiquem-se, provocando períodos prolongados de seca ou enchentes, qual será o custo disso?
Patricia Pinho — Essa é uma questão central da mudança no meio ambiente, ela é bem mais perceptível pelas pessoas porque veem a escassez do recurso, o desaparecimento de algumas espécies. O clima é algo um pouco intangível, mas o que está acontecendo agora é diferente. Temos sentido na pele o aumento da temperatura, sobretudo nas regiões mais tropicais do sul do globo terrestre, como sendo o novo normal. É necessário que as pessoas se mobilizem no que tange às ações coletivas, porque a ideia de que, então, vamos colocar ar-condicionado dentro das nossas casas, nos carros, apenas contribui para a piora da crise climática. Você não está resolvendo a problemática, está jogando essas questões para as gerações futuras. Precisamos ter estratégias em massa — que são adaptativas e que melhoram o conforto térmico, o bem-estar humano, reduzindo problemas cardiovasculares —, ações políticas, no setor privado, para colaborar, ter alternativa energética, trazer reflorestamento, árvores para o meio urbano, soluções baseadas na Natureza de baixíssimo custo e que reduzem muito a temperatura experienciada nessas ilhas de calor, que são as grandes cidades. Qualquer atitude importa: “Deixei a luz acesa, vou lá apagar”, porque a nossa geração de energia hoje é de uma fonte não renovável. Ela é hídrica. Por que o Brasil não passa para a energia solar? Eu trabalhei em um projeto na África do Sul onde as comunidades para as mulheres, sobretudo as que lideram as suas casas, suas famílias, utilizam a geração de energia solar alternativa. Que estejamos atentos para os meios já disponíveis, que isso aconteça logo, para evitar colapsos, limites duros de adaptação, como o colapso de um ecossistema. No caso do Brasil, para a Amazônia, esse colapso é esperado no aquecimento acima de 2 graus, e, pela nossa trajetória, alcançaremos isso em breve, talvez em 2040, e aí nem a tecnologia mais avançada nem dinheiro nenhum investido serão capazes de reparar esses danos, esses serviços globais ecossistêmicos.
BV — Se não fizermos essa mudança de cultura de consumo, por mais que isso tenha um custo, o problema pode ganhar uma magnitude que talvez não tenhamos condições de arcar com suas consequências?
Patricia Pinho — Nós já temos perdas econômicas expressivas que estão sendo observadas aqui no Brasil. Por isso, é uma honra falar sobre esse relatório, porque eu vi que grandes jornais da mídia nacional não estamparam o seu resultado em primeira página, e isso para mim é um crime contra a nossa sociedade. A população precisa conhecer os impactos que já são observados e dos riscos futuros. Quanto mais tempo deixamos passar sem ação, maiores serão as lacunas de adaptação e os riscos. Que tipos de emprego as pessoas terão daqui a 10 anos? Que tipo de economia? A pandemia mostrou uma nova forma de fazer as coisas; hoje, por exemplo, eu viajo muito menos, há reuniões em que não preciso estar fisicamente, o meio digital funciona, e ele reduz a emissão e a dependência de combustíveis fósseis, o uso de ar-condicionado, o consumo exacerbado de produtos e alimentos. A Covid-19 mostrou que é possível mudar comportamentos. Desenvolver a ciclovia em São Paulo é importante, tem um custo pequeno e é uma estratégia de adaptação, porque permite que as pessoas se locomovam em pequenas distâncias, [tenham um espaço de] lazer, sem falar no benefício para a saúde. E a gente tem de pensar em outras economias possíveis, que sejam mais sustentáveis, que promovam o bem-estar humano e a resiliência.