Razão e Fé podem caminhar juntas
Com suas pesquisas, o psicólogo Geraldo de Paiva analisa o suposto conflito entre Ciência e Religião
Leila Marco e Josué Bertolin
07/06/2021 às 11h37 - segunda-feira | Atualizado em 07/06/2021 às 12h33
Com vasta experiência de mais de três décadas no estudo da Psicologia da Religião, Geraldo José de Paiva, professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), falou com exclusividade à Super Rede Boa Vontade de Comunicação (rádio, TV, internet e publicações) a respeito dos primeiros resultados da pesquisa que está realizando com destacados cientistas brasileiros. O trabalho, já em suas primeiras conclusões, mostra não só que é possível haver interação entre essas duas áreas, mas também que elas podem promover intercâmbio de conhecimentos.
O levantamento do dr. Geraldo e de sua equipe de pesquisadores também dialoga com uma das máximas defendidas pelo Fórum Mundial Espírito e Ciência, da Legião da Boa Vontade (LBV), proferida pelo seu criador, o dirigente da Instituição, José de Paiva Netto: “A vanguarda de uma Ciência que elevará o ser humano a raciocínios hoje inconcebíveis para a maioria, volta o seu olhar — sem clichês, preconceitos e tabus — para a Espiritualidade. Mesmo que ainda muitos não creiam ou não compreendam, o fato é que o conhecimento humano caminha nessa direção”.
A seguir, trechos desse interessante bate-papo, no qual nosso convidado fala de seus estudos e antecipa resultados de sua pesquisa.
BOA VONTADE — O que representa a Religião para as sociedades?
Dr. Geraldo de Paiva — Essa é uma das perguntas mais difíceis de responder, porque Religião é um termo bastante definido aqui no Ocidente, mas não encontra uma correspondência muito próxima na maior parte do mundo. É difícil estudar a Religião em geral, porque existem diversas e com características muito diferentes. (...) Hoje em dia, a função da Religião mais presente é aquela da busca pelo sentido da vida. Então, qualquer coisa que dê sentido é chamada de Religião. Mas você vê que isso é muito arriscado. Porque, por exemplo, se a pessoa encontra o sentido da vida em um partido político, em uma relação econômica, será que ela tem isso como Religião? Por isso, procurei seguir um conceito mais próximo do uso linguístico, quer dizer, vou chamar de Religião aquilo que os que estão afiliados a determinado grupo a chamam. E assim mesmo teremos dezenas, senão centenas, de religiões.
+ CONHEÇA A EDIÇÃO Nº 260 DA REVISTA BOA VONTADE
BV — O senhor estudou, na Bélgica, com o psicólogo Antoine Vergote (1921-2013), que afirmava que “pode-se dizer que tudo no ser humano, portanto também a sua experiência religiosa, é psicológico. Afirmação assertiva. Mas nem tudo é psicológico. Afirmação exclusiva”. Diante disso, quais têm sido os objetos de estudo da Psicologia da Religião?
Dr. Geraldo de Paiva — Tudo no ser humano é psicológico, mas o psicológico não é tudo. Então, se todas as coisas são psicológicas, mesmo as coisas físicas são atingidas através de nossos sentidos. Uma mesa não existe se eu não a vir ou tocar. Mas isso não significa que a mesa é uma realidade puramente subjetiva. (...) Ela está ali objetivamente. (...) E isso diz respeito também à Religião, porque é feita de convicções, pensamentos, afetos, atos, que são todas realidades psicológicas, mas não quer dizer que ela seja meramente o que eu penso, deseje e sinta que ela seja; Religião é também algo objetivo. Suponha, por exemplo, um pregador que disse que teve uma revelação divina e começou a pregar uma Religião, isso é algo objetivo; ele e as palavras dele são objetivos. Aquela Religião também existe objetivamente, embora tudo isso seja assumido e recebido pela pessoa de uma forma psicológica. (...) Então, uma área muito importante da Psicologia da Religião é estudar os atos que podem ser positivos ou negativos em relação ao objeto religioso. E, hoje em dia, a Psicologia em geral tem enfatizado os condicionamentos neurofisiológicos e biológicos, isto é, as condições pré-culturais para qualquer tipo de comportamento humano. (...) E a Religião também tem naturalmente suas bases neurofisiológicas, mesmo que não possamos reduzi-la a isso. Mas isso torna possível o acesso à Religião pelo caminho da socialização, que é muito importante para todo tipo de conhecimento humano.
BV — Gostaríamos que falasse sobre sua pesquisa de livre-docência, defendida na USP, em 1993, “Itinerários Religiosos e Acadêmicos: um enfoque psicológico”.
Dr. Geraldo de Paiva — A livre-docência não é obrigatória na USP, mas é um passo que se faz após anos estudando um assunto. Depois que estive na Universidade [Católica] de Louvain-la-Neuve, [na Bélgica,] na qual cursei Psicologia da Religião, achei interessante fazer uma pesquisa sobre a Religião de colegas cientistas. Consultei um professor de destaque em cada um dos nossos quatro departamentos do Instituto de Psicologia da USP. (...) Então, comecei a realizar entrevistas, (...) com as três áreas clássicas dos chamados conflitos entre Ciência e Religião, que são a Física, a Biologia e as Ciências Humanas, isto é, todos esses campos tiveram, em algum momento, dificuldade com a Religião. Primeiro foi a Física, quando a Terra deixou de ser entendida como o centro do Universo; depois a Biologia, com a teoria da evolução; e, posteriormente, as Ciências Humanas, que interpretam todos os comportamentos simplesmente como realmente humanos, e só isso. Peguei o pessoal do departamento de Física, de Zoologia e de História da USP. Consegui realizar a pesquisa com 27 professores, por conta da disponibilidade de tempo e de local. E eu fiz as entrevistas pessoalmente; isso levou um ano e meio. Encontrei pessoas muito religiosas, outras completamente ateias e as que estavam entre um e outro, quer dizer, tinham uma religiosidade pessoal.
+ CONHEÇA A EDIÇÃO Nº 260 DA REVISTA BOA VONTADE
BV — Quais teorias foram utilizadas nessa abordagem e a quais resultados se chegou?
Dr. Geraldo de Paiva — Procurei trabalhar em dois níveis, um mais consciente e um pré-consciente. Usei duas grandes teorias: a de Kurt Lewin [1890-1947], um psicólogo dos mais influentes [que estabeleceu as bases] da Psicologia Social Moderna, que fala que cada um de nós tem um espaço vital e que esse espaço é feito dos nossos interesses, das nossas emoções, de acordo com aquilo que defendemos. Ele estabeleceu que nesses tópicos existem várias regiões, e elas podem ter comunicações ou não. Por exemplo, os japoneses apresentam a comida como algo estético, mas outras culturas não. E assim também a Religião é passível de estar estabelecida com alimentação. Como assim? Existem judeus, ou os islamitas mais ortodoxos, que não podem comer carne de porco. São Paulo afirma: “quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus” [Primeira Epístola aos Coríntios, 10:31]. Se o indivíduo vive com esse pensamento, a comida e a bebida também se tornam meios religiosos. Então, eu teria com os professores ao menos duas grandes regiões: Ciência e Religião, poderia examinar se elas estão em conflito, se estão separadas, ou mais ou menos unidas, ou ainda bastante unidas. Isso no nível do consciente. (...) Eu procurei inspiração para estudar também o pré-consciente, até mesmo o inconsciente. Por quê? Encontrei um caso só que realmente dizia: Deus existe. Vários outros disseram que tinham alguma relação com algo superior, transcendente. Esse transcendente poderia ser um Deus do Cristianismo ou energias cósmicas... (...) Foi elaborado um ponto de vista do inconsciente ou do pré-consciente, de coisas que não estão exatamente assim na sua consciência viva atual, mas estão lá, na retaguarda. Os resultados foram interessantes e, para mim, inesperados. Em nível de consciência, não encontrei nenhum conflito entre Ciência e Religião. Só que alguns diziam: A Ciência é conhecimento, a Religião, não. Então, eles não sentiam conflito, porque tiraram qualquer valor de conhecimento da Religião. Conheço também cientistas muito bons que são religiosos, mas essa região era separada da Ciência dele. Outros, pelo contrário, conseguiam integrar as duas áreas. (...) Agora, do ponto de vista do pré-consciente, encontrei muito conflito. E qual é o conflito? O da dependência de um poder ou de um ser superior. Existe uma tendência difusa em querermos ser, por assim dizer, donos de nós mesmos, aquilo que se chama de autarquia, não queremos depender de outrem, seja em relação àquilo que pensamos, desejamos ou fazemos. Entre os cientistas, (...) eu encontrei esses conflitos de autarquia. Agora, é importante lembrar que essa pesquisa foi realizada dentro de uma tradição cristã predominante.
BV — O senhor está agora em meio a uma pesquisa para estudar novamente a Religião na percepção de cientistas. O que o senhor pode falar sobre ela até o momento?
Dr. Geraldo de Paiva — A nossa proposta era bem ampla, queríamos fazer um levantamento mais representativo das atitudes dos pesquisadores e professores das universidades, mas no Brasil há centenas, ao menos dezenas e dezenas. Então, primeiro procuramos as universidades mais conceituadas. Existem vários rankings internacionais, e nós pegamos um que é respeitado, que é o Quacquarelli Symonds[, do Reino Unido]. (...) Entramos em contato com essas universidades, enviando aos professores, pessoalmente, um questionário, que foi em grande parte embasado na minha pesquisa. Foi um trabalho árduo, gastamos bastante tempo para fazer esse questionário. Depois o submetemos a alguns juízes, também para ver se tudo estava claro ou não. Obtivemos um número bom, mais de mil respondentes. Estamos agora organizando, inclusive estatisticamente, essas respostas, para ver até que ponto elas representam suficientemente o universo, isto é, a população de professores. As perguntas são relacionadas à família, à educação, à experiência acadêmica da graduação, à pós-graduação, à atividade atual, à experiência no exterior, digamos, de educação de filhos... São questões que abrangem a vida da pessoa, porque partimos do princípio de que Ciência e Religião não existem, o que há são cientistas e religiosos. Então, para entender como os cientistas se colocam frente à Religião, é preciso conhecer a origem deles, as influências, onde estudaram, se foram para o exterior e outros aspectos. Daí, partimos para as entrevistas que foram concluídas. [Por causa da pandemia,] ficou tudo on-line, mas assim mesmo deu muito certo, porque são dois pesquisadores que participam da reunião, e os dois interagem com o entrevistado. Agora, estamos na fase de organizar esses dados que obtivemos nas conversas em 12 categorias em que discutiremos o que é prevalente, o que é esporádico, o que é pessoal e o que é compartilhado. Não posso falar de forma mais global a minha impressão, porque conheço ainda apenas 10 entrevistas; nas próximas semanas tomarei conhecimento das demais. Eu posso dizer que até agora não encontrei conflito entre Ciência e Religião. A minha impressão é que será bastante confirmado aquilo que encontrei 30 anos atrás, mas essa é uma impressão provisória, por não conhecer todas, mas, naquelas que eu fiz, fiquei surpreso. Eu achava que ia encontrar conflito, mas não há. E olha que entre esses que entrevistei existem os que não creem em Deus ou os que dizem não ter uma ligação com uma espécie de energia superior. Nós vamos apresentar o relatório à Fapesp*¹ em julho; então, até agosto, posso dar a conclusão geral.
+ CONHEÇA A EDIÇÃO Nº 260 DA REVISTA BOA VONTADE
BV — Tendo como base que não encontrou no nível consciente esse conflito, como o senhor enxerga a possibilidade de intercâmbio produtivo entre essas áreas?
Dr. Geraldo de Paiva — Realmente, existe certa ideia de que Religião e Ciência estão conflitando. Trata-se de uma longa história, mas eu diria que essa ideia é difundida muito por meios de comunicação. Para falar em conflito, é preciso ter uma formação bastante avançada em Ciência e Religião. Do contrário, não se sabe com que está brigando. Portanto, é muito importante que os que escrevem, divulgam de alguma forma, sejam bastante competentes em algum tipo de Ciência ou Religião, isso é a primeira coisa. Vejam se o artigo é sólido, [verifiquem] o ambiente. Por exemplo, um ambiente universitário é interessante, porque nessas pesquisas não existe essa oposição tão viva, existem momentos de oposição, não é algo constante. (...) Há um autor chamado Stephen [Jay] Gould*² que estabelece que a relação entre Ciência e Religião é de independência, porque cada qual tem a sua autoridade de Magistério [o que ele chamou de “Magistérios Não Interferentes”], ou seja, um não se sobrepõe ao outro, são duas autoridades. (...) Há os que dialogam, que podem conversar civilizadamente, cada qual dentro da sua competência. Alguns são integracionistas, dizem: a Ciência vai até certo ponto, e reconhecem que há um campo aberto que ainda não conhecem. Nesses pontos, entra a Religião, porque, na verdade, a Religião fala muito daquilo que é fundamental na experiência humana. E a Ciência não chega a esse nível. Então, é possível integrar uma coisa com a outra: a Ciência ficando no campo do conhecimento, digamos metodológico, e a Religião tratando dos aspectos que são mais vividos do que enunciados.
______________________________________
*¹ Fapesp — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
*² Stephen Jay Gould (1941-2002) — Esse paleontólogo e escritor norte-americano, um dos mais respeitados cientistas contemporâneos, foi professor nas universidades de Harvard e de Nova York. Em seu livro Pilares do Tempo (Rocco), defende a coexistência harmônica entre Ciência e Religião como forma de o ser humano atingir a plenitude racional e espiritual.