A dimensão espiritual do paciente
Para pesquisador americano, “Qualquer abordagem para os problemas psicológicos e de saúde física que ignore ou negligencie a Espiritualidade e a Religião será incompleta”.
Alan Lincoln e Gabriele Elisa Barros
05/10/2018 às 12h11 - sexta-feira | Atualizado em 29/04/2021 às 10h30
O Fórum Mundial Espírito e Ciência* (FMEC), da Legião da Boa Vontade, tem demonstrado o quanto a Espiritualidade tem sido, cada vez mais, objeto de estudo científico. No campo da Psicologia, um dos principais pesquisadores da atualidade, que investiga a importância da dimensão espiritual nos cuidados clínicos, é o norte-americano Kenneth Pargament, professor emérito de Psicologia da Universidade de Bowling Green. Estudioso do tema há quase duas décadas, ele viaja o mundo com o propósito de apresentar aos profissionais da área médica essa abordagem diferenciada no tratamento de distúrbios psíquicos e fisiológicos.
Em recente passagem pelo Brasil, Pargament, que é autor de centenas de artigos sobre o tema e do livro Spiritually Integrated Psychotherapy: Understanding and Addressing the Sacred (Psicoterapia Espiritualmente Integrada: Compreendendo e Lidando com o Sagrado), concedeu entrevista exclusiva à revista BOA VONTADE. No bate-papo, falou dos resultados de sua pesquisa, principalmente da metodologia do “coping religioso”, por meio da qual tem demonstrado como a Fé ajuda as pessoas a lidar com as diversas formas de estresse e a conquistar o bem-estar individual e social.
BOA VONTADE — Qual é a influência da Espiritualidade na vida de um indivíduo que passa por situação de tensão?
Kenneth Pargament — Sabemos que, quando as pessoas enfrentam os maiores desafios da vida — sejam eles trauma, morte, doença, divórcio, acidente [ou] lesão —, muitas vezes encontram na Fé o apoio. Na verdade, para algumas delas, a Religião é o primeiro lugar a que recorrem quando tentam entender e lidar com as situações de maior estresse em suas vidas.
BV — De que maneira a Religião, independentemente da denominação, ajuda na superação de experiências traumáticas?
Kenneth Pargament — Pode-se encontrar diferentes fontes de apoio por meio da Fé. A Religião ajuda a enxergar um propósito nos tempos mais difíceis; proporciona conforto emocional; oferece esperança; contribui para o melhor autocontrole, de modo que o indivíduo não cometa o erro de ceder às suas emoções ou aos seus impulsos. E, para alguns, a Religião pode ainda propiciar grande transformação na vida, quando antigos caminhos não estão mais dando certo.
BV — Como a Espiritualidade ajuda quem perde um ente querido?
Kenneth Pargament — A realidade é que somos todos seres frágeis. Não importa quão bem cuidamos de nós mesmos, o quanto nos exercitamos, se temos uma boa alimentação, boas amizades... Mais cedo ou mais tarde, todos nós morreremos. O que a Religião nos oferece é uma maneira de aceitar nossas limitações humanas e de ver a morte com um olhar mais benevolente e compassivo. A esperança se apresenta de várias formas. Para alguns, talvez seja a crença na vida após a morte; para outros, atos de afeto e compaixão que são passados para as próximas gerações, e isso nunca morre. (...) Um dos elementos mais relevantes de acreditar na vida após a morte é a sensação ou o saber de que aqueles que se foram antes de nós ainda estão presentes e que podemos nos conectar a eles, sentir seus pensamentos carinhosos e, às vezes, seus conselhos. Algumas pessoas têm a sensação de que, às vezes, seus entes queridos conversam com elas. Isso não é sinal de psicopatologia ou de loucura. É algo muito natural e normal. De fato, pesquisas apontam que muitas pessoas têm experiências de conexão com aqueles que já morreram.
BV — Qual é a visão da Ciência sobre o coping, quando se trata da ideia de comunicação com os que se encontram do outro lado da vida?
Kenneth Pargament — Podemos analisar essa comunicação como outra fonte de apoio social. [Por exemplo], Temos colaboração dos que estão vivos, de familiares e de amigos. As leituras ajudam. O apoio de parentes que já partiram também pode ser importante. As pessoas podem visitar um túmulo e conversar com alguém que já morreu, e esse tipo de interação pode ser significativa, acolhedora. Eu tive uma paciente que estava se sentindo isolada e sozinha no hospital. Ela não tinha família nem amigos, e seus pais haviam morrido há alguns anos. Ela estava muito desolada, muito chateada. Em outra ocasião em que a vi no hospital, eu [percebi uma diferença e] falei: “Você está melhor. O que está acontecendo?” Ela disse que em uma noite estava dormindo e, quando acordou, viu seus pais. Eles estavam ao lado dela e seguravam a sua mão, dizendo que a amavam e que estariam ao seu lado. Essa paciente não apresentava nenhum sinal de psicose ou problemas psicológicos relevantes. Foi uma experiência espiritual poderosa e significativa.
BV — De que forma a Espiritualidade e valores de vida, como a gratidão, podem ser fatores de proteção para os indivíduos?
Kenneth Pargament — Na Espiritualidade, encontramos valores e práticas que podem ser de grande ajuda para as pessoas em momentos difíceis. Ser capaz de se concentrar não apenas no que você perdeu, mas no que tem, e ser grato [por isso]. Há várias pesquisas notáveis que mostram que quem dedica um tempo a escrever à noite, por pelo menos cinco minutos, anotando coisas pelas quais é grato, por meio dessa prática espiritual, consegue melhorar a saúde e o bem-estar ao longo do tempo. Outro valor importante é o perdão. Na nossa cultura, particularmente onde eu moro nos Estados Unidos, muitos se apegam à raiva, à amargura e ao ressentimento. Dirigindo, é comum deparar-me com condutas agressivas, com motoristas que estão simplesmente com raiva. Se alguém não está seguindo rápido o suficiente, eles se tornam agressivos, aceleram e ultrapassam. Essas pessoas têm dificuldade em deixar de lado o sentimento de injustiça, de desonestidade e de rancor. É claro que, às vezes, temos o direito de ter esses sentimentos, mas isso pode se tornar um estilo de vida. Nas religiões do mundo, encontramos o recurso do perdão, uma maneira de tentar ajudar os indivíduos a se desprender disso.
BV — A meditação, que antes era associada unicamente ao campo espiritual, tem sido utilizada hoje em dia como importante recurso em outras áreas do conhecimento, a exemplo da própria Medicina. O que o senhor descobriu observando essa prática?
Kenneth Pargament — A meditação se tornou muito popular. Muitas pessoas desenvolveram diferentes tipos de meditação, como o mindfulness [atenção plena, em português], meditação com mantras. É amplamente proclamado que você não precisa ser religioso para meditar, e isso é uma grande verdade. Mas, por outro lado, a meditação tem raízes profundas nas tradições espirituais. Podemos encontrá-la no Budismo, no Judaísmo, no Cristianismo, no Hinduísmo e no Islamismo. As principais religiões do mundo têm um componente meditativo. [É interessante] Este apontamento de uma ex-aluna minha de pós-graduação, Amy Wachholtz: “Se tirarmos as raízes religiosas da meditação, talvez estejamos diminuindo seu poder”. Ela comparou os efeitos da meditação espiritual com os efeitos de outras sem qualquer alusão à Religião ou à Espiritualidade em pessoas com dores crônicas e descobriu que a meditação espiritual, com uso de frases como: “Deus é Paz. Deus é Amor”, foi consideravelmente mais benéfica na redução da dor do que meditar com uma frase secular como “A grama é verde” ou “A areia é macia”. Isso sugere que devemos prestar atenção às raízes espirituais da meditação e aproveitá-las melhor.
“Caminhamos em direção à saúde mental e a sistemas que, a meu ver, estão se tornando mais sensíveis e compreensivos com o papel que a Espiritualidade pode desempenhar na vida das pessoas.”
BV — O senhor tem estudado a santificação das atividades da vida. O que isso significa e quais são os benefícios dessa maneira de pensar?
Kenneth Pargament — Esse é um trabalho instigante. Minha colega Annette Mahoney e eu pesquisamos sobre isso há cerca de 15 anos. [Essa pesquisa] Está ligada à definição de Espiritualidade, que é, antes de mais nada, uma maneira de ver as coisas, de enxergar uma dimensão mais profunda da vida, o que está debaixo da superfície. Você pode olhar para qualquer aspecto da vida como algo puramente material e secular. A Natureza, por exemplo, é possível vê-la como algo apenas físico, biológico, ou enxergá-la em uma dimensão mais profunda. Da mesma forma ocorre com os relacionamentos. (...) O que descobrimos é que, quando as pessoas santificam as coisas, percebem essa dimensão mais profunda em sua existência ― seja na Natureza, nos relacionamentos, no trabalho, na música etc. —, dão mais propósito, valor a tudo isso. Essa percepção torna-se um recurso que tentamos preservar e proteger e que usamos em nossas vidas para melhorar a saúde e o bem-estar.
BV — Com base no que falou, o caminho mais acertado, então, é olhar para os seres humanos e seus problemas considerando a dimensão espiritual...
Kenneth Pargament — Acredito que sim. Não somos apenas seres físicos, sociais e psicológicos. Somos seres espirituais. E descobrimos isso quando prestamos mais atenção a essa dimensão e quando a integramos na maneira como vemos as pessoas. A Espiritualidade não está separada do restante da vida, está entrelaçada nas diversas dimensões de nossa existência: na Biologia, na Psicologia, nos relacionamentos. À medida que olhamos para os indivíduos como seres completos, humanos, biopsicossociais e espirituais, aumentamos a capacidade de ajudar os outros a lidar com essa gama de desafios e problemas da vida.
BV — Gostaríamos de deixar este espaço para seus comentários finais ao público brasileiro, que é muito interessado por pesquisas que reúnem Espiritualidade e Ciência.
Kenneth Pargament — Caminhamos em direção à saúde mental e a sistemas que, a meu ver, estão se tornando mais sensíveis e compreensivos com o papel que a Espiritualidade pode desempenhar na vida das pessoas. Em última análise, acho que estamos aprendendo que qualquer abordagem para [o tratamento de] nossos problemas psicológicos e de saúde física que ignore ou negligencie a Espiritualidade e a Religião será incompleta. Espero ansiosamente por uma nova leva de pesquisadores, profissionais de saúde mental, médicos e enfermeiros que conduzirá esse campo em novas e promissoras direções. E, no Brasil, há pessoas que estão na vanguarda desse movimento.
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* Cumprindo a avançadíssima missão do Parlamento Mundial da Fraternidade Ecumênica, o ParlaMundi da Legião da Boa Vontade, localizado em Brasília/DF, seu idealizador e fundador, José de Paiva Netto, criou, em 2000, o Fórum Mundial Espírito e Ciência (FMEC). Por meio desse espaço de debate fraterno, cientistas e religiosos têm compartilhado seus pontos de vista acerca de diversos temas, inclusive sobre a relação entre os respectivos ramos de atividade.
Este conteúdo consta na revista BOA VONTADE nº 246, de outubro de 2018. Para obter seu exemplar digital, baixe o aplicativo BOA VONTADE Magazine, disponível gratuitamente na Google Play e na App Store.