SETEMBRO AMARELO: Especialista fala sobre a importância da prevenção ao suicídio

Psiquiatra Neury José Botega, um dos principais estudiosos a respeito do comportamento suicida no Brasil, traz importantes alertas

Da redação

31/08/2024 às 13h06 - sábado | Atualizado em 31/08/2024 às 11h36

Neste mês, importante data deve ser lembrada. Trata-se do Setembro Amarelo, necessária campanha internacional de prevenção ao suicídio, tema fundamental e sempre oportuno. Para falar sobre o assunto, a equipe da revista BOA VONTADE conversou com o psiquiatra Neury José Botega, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos principais estudiosos a respeito do comportamento suicida no Brasil. 

Em sua entrevista, ele chama a atenção para o fato de que, infelizmente, a sociedade tem de estar mais atenta ao público jovem, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) que apontam o suicídio como a segunda causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos no mundo, atrás apenas de acidentes de trânsito.

De acordo com Botega, o uso banalizado e excessivo das redes sociais está bastante relacionado à alta incidência desse grave problema entre a juventude, provocando um temido paradoxo: “(...) Elas nos condenam à solidão. As redes sociais têm e transmitem uma falsa sensação de conexão. (...) O bullying também é feroz nas redes sociais, o que dá voz a muitos ignorantes”.

Acompanhe os esclarecimentos do entrevistado e conheça as principais ações para se combater esse triste cenário, de modo que a escolha pela vida sempre vença a desesperança.

BOA VONTADE — Como a pandemia do coronavírus contribiuiu para o aumento dos casos de suicídio?

Dr. Neury Botega — Vivemos uma época peculiar, em que há muitas ameaças e incertezas. Para uma pessoa ansiosa, esses ingredientes fazem com que os sintomas dessa ansiedade fiquem um pouco mais exacerbados. Mas [a pandemia] também fez com que ficássemos mais sensibilizados ao doente mental. (...) Na fase atual [da crise sanitária], as pessoas têm que enfrentar a perda, o luto por alguém querido. Às vezes, pode se ter perdido um posto de trabalho ou o rendimento profissional diminuiu e percebeu-se que o home office não é essa maravilha sempre. Ele começou a dar confusão por causa dos “malabares” de atividades e o cansaço. [Outro ponto desafiador também é conciliar] disponibilidade total para a empresa enquanto as crianças de casa demandam atenção, assim como depender da internet que nem sempre está disponível... Estamos na fase do exaurimento. Então, muitas pessoas vêm ao consultório cansadas, desanimadas, com perda do otimismo. [Nós, profissionais ligados à saúde mental], até temos tido mais trabalho, porque é tão importante diferenciar o que é um sentimento humano normal daquilo que começa a ser patológico e exige um tratamento, uma atenção mais específica. Então, estes são grandes desafios: fazer um diagnóstico preciso e oferecer tratamento adequado, mas sem “psiquiatrizar” as dores normais da existência.

BV — Como distinguir sentimentos e comportamentos normais daqueles que podem suscitar ou revelar a ideação suicida?

Dr. Neury Botega — Um fator que separa o que é normal do que é patológico é este: quando se instala um novo padrão de comportamento ou de sentimento que faz a pessoa se estranhar ou que faz aqueles que estão ao redor dela e que têm um olhar mais sensível estranharem a pessoa. E é importante que os mais próximos tenham esse olhar mais sensível, porque, às vezes, no “batidão” da vida, a gente não repara que quem está ao lado passou a consumir mais bebidas alcoólicas — situação que, aliás, foi um dos problemas agravados pela pandemia. É normal a gente ficar triste. (...) Agora, quando eu passo duas semanas inteiras muito desanimado, mudando o meu jeito de ser, trocando os horários, não tendo mais prazer naquelas mínimas coisas que me davam satisfação, quando eu não consigo mais sair disso, então é um novo padrão. Aí pode não ser só tristeza, pode ser uma depressão. Existem sutilezas, mas também características típicas da depressão, como o emagrecimento ou, para quem é ansioso, comer demais, ter insônia na madrugada, se sentir pior na parte da manhã e ir melhorando ao longo do dia. Em uma avaliação clínica cuidadosa, há uma série de pontos de que podemos nos valer para diferenciar o que é tristeza normal e o que é depressão, algo patológico.

BV — As taxas de suicídio entre as mulheres cresceram bastante no Japão durante a pandemia. Também devemos nos preocupar com as brasileiras?

Dr. Neury Botega — O Japão trouxe uma grande surpresa, porque, no primeiro ano de pandemia, em 2020, os índices de suicídio, de um modo geral, diminuíram em todos os países que já publicaram suas estatísticas. Lá, o grupo das mulheres sofreu mais. Provavelmente, o contexto da mulher japonesa, com menos apoio social, com multitarefas, com muita pressão, dificuldade para contar com a ajuda do parceiro, [enfim,] todo esse quadro, pode ter levado mais mulheres à depressão e ao suicídio. De fato, ele cresceu entre as japonesas. (...) [Vale destacar que] 83% dos países que são membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) conseguiram diminuir os índices de suicídio nos últimos anos. O Brasil está na contramão disso, porque aqui os índices de suicídio aumentam ano a ano. E em que faixa etária? Cada vez mais entre os jovens e os adultos jovens. Isso nos leva a vários questionamentos. De que forma se configura hoje a mente dos jovens? Como a nossa sociedade lida com eles e qual é a perspectiva que um adulto jovem tem atualmente dentro da nossa sociedade?

BV — Qual a causa principal que leva alguém a tirar a própria vida?

Dr. Neury Botega — O suicídio é um evento trágico, resultante da combinação de vários fatores. Às vezes, quando sabemos de um caso, ficamos logo nos perguntando o que fez a pessoa se matar. Mas o que leva alguém a tirar a própria vida não consiste em uma única causa. É uma combinação de fatores que vêm desde o nascimento, atrelados a toda uma história de vida com provações, dificuldades, pontos fortes, pontos frágeis... E em nosso país, que tem dados [relacionados a suicídio] somente do fim de 2019, continua a tendência já observada anteriormente de crescimento dos índices de suicídio, principalmente entre jovens do sexo masculino.

BV — Por que essa faixa etária está cada vez mais vulnerável à ideação suicida?

Dr. Neury Botega — Não há dúvidas de que as redes sociais nos condenam à solidão. Elas têm e transmitem uma falsa sensação de conexão, aumentam a ansiedade, porque “eu sempre tenho que estar ligado, tenho medo de perder a última notícia, a última novidade”. Há gente que, enquanto está deitada na cama, dá a última olhada no celular e depois não consegue dormir. As redes sociais também dão uma sensação de que a vida do outro está melhor, porque ele postou a foto mais bonita das 30 que tirou em um minuto; nos dão a impressão de que o outro vive bem, e a gente, mal. A conexão virtual faz com que a gente se sinta desconectada do mundo real, de amigos reais, de apoios reais. O bullying também é muito feroz nas redes sociais, o que dá voz a muitos ignorantes. (...) Há uma polarização insana em que as pessoas não dialogam. Isso aumenta a sensação real de solidão, porque uma das coisas que diminuem é a troca de ideia, sentir que estou crescendo com o outro e vice-versa. E o diálogo deixou de existir nas redes sociais, elas estão polarizadas. O bullying chega com tudo, e o adolescente, muito solitário no quarto, ligado o tempo todo na internet, passa a se sentir mal, deprimido, sem apoio de fato. [Com isso,] chega à depressão, que pode levá-lo ao suicídio. Especialmente os jovens mais vulneráveis podem se influenciar pelo suicídio de pessoas que eles admiram, como um ídolo do rock, um ator, um artista, um influencer. O suicídio nessa faixa etária também tem essa característica de poder contagiar, e uma morte levar a outra. Um triste exemplo disso foi de um seriado veiculado há poucos anos, que levou jovens de 14 a 19 anos nos Estados Unidos, sobretudo do sexo feminino, a cometer o suicídio. Estou dando o exemplo norte-americano porque foi lá que se fizeram os estudos mais inquestionáveis. Dois grupos de pesquisa independentes, usando métodos bem cuidadosos de estudo, mostraram um acúmulo de mortes por suicídio entre os jovens nos seis meses que se seguiram ao lançamento da série. Temos que estar bem atentos, visto que as redes sociais e a velocidade com que as coisas hoje são veiculadas nas mídias podem não permitir a digestão, a sedimentação de tudo aquilo que expõem. Essa série também acabou trazendo o problema para as salas de aula, para as famílias. O sofrimento do jovem, a solidão do jovem e o risco de suicídio passaram a ser mais discutidos em nosso país.

BV — Existe alguma forma pontual de ajudar esse público?

Dr. Neury Botega — As escolas precisam ter mais espaços para a troca de ideias entre adolescentes. Na verdade, a criança pequena já tem que crescer no processo de educação em que ela valoriza e respeita o outro, porque, se a gente reduzir o bullying no ambiente escolar, já combateremos um dos fatores de risco para o suicídio de adolescentes. Se criarmos escolas mais solidárias, a gente também não estimulará o perfeccionismo daqueles jovens que sentem que devem ser perfeitos, que sempre têm que aparecer bem nas fotos. Os colégios precisam de áreas em que os adolescentes compartilhem vivências, falem de suas experiências, e de educadores bem treinados, que possam detectar aqueles alunos que dão sinais de estarem enfrentando problemas, sabendo para onde encaminhá-los. Professores sensíveis são mais um “corredor de emergência” para que se possa ajudar aqueles jovens com atendimento rápido. E também é importante o treinamento de profissionais de saúde e serviços que acolham o jovem e sua família. Mas hoje, no Brasil, a gente sempre está na fase de emergência. O risco de suicídio vai aparecendo e, quando ele fica agudo, é a hora de correr. Temos que ter mecanismos para [amparar o indivíduo] quando o risco começa, como quando se constata a depressão, o alcoolismo, a falta na escola, a piora nas notas, o comportamento agressivo com os colegas etc. É preciso ter estrutura para acolher emergencialmente a pessoa que está francamente pensando em se matar em poucas horas. Não temos hoje no Brasil esse tipo de estrutura na área de saúde mental. Uma pessoa que é de classe média alta talvez consiga ter acesso a um psicólogo ou médico particular. Mas e quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS), que é a realidade da maioria dos brasileiros?

BV — Como posso ajudar alguém próximo que deu sinais de que pensa em se matar?

Dr. Neury Botega — A melhor maneira de lidar com uma pessoa que está pensando em suicídio é ouvi-la. Não é fazer um discurso moral, conclamando-a a ser vencedora de algo. Se nós ficarmos ao lado dela, escutando com atenção, com respeito, isso já é uma grande ajuda. E, no segundo momento, conduzi-la até um profissional de saúde mental, porque uma pessoa que está mal, deprimida, não tem nem iniciativa nem energia para pegar um telefone, marcar horário, se deslocar, comprar remédio e tomá-lo todo dia. Há muitas formas de ajudar. (...) Eu costumo ensinar a regrinha da sigla “ROC”. “R” de repare no risco. Às vezes, quem está do seu lado não está bem. Mudou o comportamento, está postando coisas estranhas e pode estar pensando em suicídio. “O” de ouça com atenção, sem julgar, com tempo de qualidade, sem querer convencer [a pessoa] com uma repetição de discursos moralistas. E, finalmente, “C” de conduza. Conduza a pessoa a um especialista em saúde mental.

BV — Uma única pessoa tem condições de cuidar sozinha de quem está com ideação suicida?

Dr. Neury Botega — É necessária a ajuda de outras [pessoas]. Por exemplo, quando eu era um jovem psiquiatra, atendi uma pessoa com risco de suicídio, cheguei a dizer: pode ligar para mim a qualquer hora que você precisar. Essa é uma frase que hoje não falo mais. Digo assim para o meu paciente: olha, conte comigo. Eu vou ajudá-lo o máximo que puder. Mas com quem mais podemos contar? Em quem você confia? Vamos fazer uma lista com os nomes de três pessoas que você pode procurar? Porque, às vezes, você liga para a primeira e não a encontra, então, precisa de uma segunda pessoa, de uma terceira. Fui ficando mais realista com o amadurecimento. Quando a gente se arvora em resolver o problema de alguém, sai de um sentimento terrível, que é a impotência, e parte para outro terrível também, que é a onipotência de achar que [sozinhos] podemos dar conta [de apoiar quem está precisando de ajuda]. Possivelmente, uma mãe pense que pode dar conta “dessas ideiazinhas de suicídio do meu filho. Ele só está ameaçando. Não vai se matar, não”. Ou seja, a banalização é também uma forma poderosa de negar, de não querer ver. Quando um adolescente fala “vou me matar”, nunca se deve pensar que ele está ameaçando, fazendo drama, que não tem coragem. O pior que se poderia fazer por esse adolescente é falar: “Ah, vai nada. Você não tem coragem. Quem quer se matar se mata, não fica ameaçando como você”. Isso seria terrível! Até pode haver o “teatro”, o drama por parte dele, mas isso é um componente. Se você dá essa resposta para o adolescente, ele diz: “Ah, é? Você não acredita em mim? Eu vou dar um ‘presente’ a você”. E a surpresa que ele lhe dará pode ser a morte dele próprio, porque dessa maneira declara e crava dentro de você a dor dele que você não valorizou, que você desprezou e disse ser coisa de gente fraca ou que só quer aparecer. (...) Hoje, a ameaça de suicídio ou cortar coxa, cortar pulsos, cortar barriga etc., tudo isso se transformou em uma linguagem para expressar: “Eu também estou sofrendo, e não acho uma saída”. É por isso que a gente tem que levar a sério e não desprezar [essas declarações de desesperança com a vida].

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A entrevista foi publicada originalmente na revista BOA VONTADE nº 263, de setembro de 2021. Para ler outros conteúdos desta edição, clique aqui.